A premissa de “Valente” (Brave), que estreia hoje, dua 20, parece menos Pixar e mais Disney. Como protagonista, temos a princesa Merida, que se dá bem com o pai bonachão, o rei Fergus, mas tem uma relação difícil com sua austera mãe Elinor. Apegada à tradição, a rainha lamenta a postura rebelde da filha, que culmina em uma atitude que coloca o reino em perigo. Após uma discussão séria, Merida foge para uma floresta e lá encontra o casebre de uma velha bruxa, para quem pede um encanto que mude sua mãe e seu destino. Quando o resultado do feitiço se revela, a jovem percebe que seus problemas estão apenas começando.
Contando com uma princesa, uma bruxa (não exatamente má; apenas, digamos, especializada demais), um feitiço, metamorfoses mágicas e um clímax bastante emotivo, a impressão primeira é a de que o filme dirigido por Brenda Chapman e Mark Andrews faria sentido se fosse uma animação tradicional dos estúdios Walt Disney. No entanto, uma série de diferenças marcam a nova história original da Pixar.
É verdade que a ambientação escocesa é um universo de regras próprias que vão sendo reveladas ao longo do filme, elemento comum a longas diversos como “Mulan“, “Toy Story“, “WALL·E” e “Pocahontas“. Já a magia é menos simples, pois não é apenas um dado corriqueiro ou uma ferramenta para encaminhar a trama. Algumas personagens acreditam em sua existência enquanto outras são céticas, e essa relativização é também característica da Pixar, pois as obras do estúdio frequentemente colocam certas ideias ou situações em discussão.
O tom humorístico, tão forte que surge até mesmo em cenas sérias, também deixa Valente muito mais próximo da comédia do que a maioria dos clássicos “filmes de princesa”. Essa distinção, porém, tem seu peso negativo. Não há nada errado em personagens que têm uma função determinada, e aqui, há uma porção de figuras com a missão única de fazer rir – e mesmo quando servem para movimentar a história, elas o fazem com humor. O engodo do roteiro é a apresentação narrada por Merida, que introduz cada personagem humorístico (e outros) como tal, e assim formata suas funções – que manter-se-ão imutáveis até o fim.
Há também algumas piadas, como a que envolve o resultado do feitiço, que funcionam por algum tempo, mas sofrem pela repetição e logo se tornam estafantes. Felizmente, nem todas as personagens se encontram engessadas em sua funcionalidade. Fergus, Elinor e Merida, por exemplo, alternam com bastante leveza suas facetas cômicas e dramáticas. Esse tipo de ambivalência, fruto de um esforço para repensar os valores de certos arquétipos, proporciona ao filme algumas de suas mais gratificantes qualidades.
Merida, por exemplo, pode parecer uma versão mais revoltada da Rapunzel de “Enrolados“, com seu ímpeto de ir contra as regras e se aventurar onde não lhe é permitido, mas essa tímida semelhança atenta para a grande diferença entre a protagonista de “Valente” e boa parte das princesas animadas: ela não está enfrentando uma encarnação do Mal. Todos os conflitos surgem pela insatisfação da jovem perante as tradições do reino, impostas por sua mãe. Não existe um antagonismo maniqueísta nem um vilão propriamente dito.
Essa característica permite não só uma estrutura narrativa mais livre, como também uma protagonista que representa diversos valores em vez de ser apenas um oásis para o Bem e a pureza. Isso sinaliza uma humanização bastante saudável: aquelas personagens cometem erros, reconhecem o fato e conseguem mudar suas perspectivas. O roteiro não se limita a descartar a teimosia de Merida ou o conservadorismo de Elinor, optando por trabalhar essas (e outras) características e descobrir novas facetas das mulheres. A impressão é a pretendida: de que as personalidades se mantêm, mas as situações mudam os pontos de vista.
As questões sobre o Destino chegam a uma conclusão pacífica, previsível até, mas ao dispor as tensões de forma a mudar a visão tanto de Elinor quanto de Merida, a moral do filme é permissiva o bastante para não ser simplória. Um ato da princesa que poderia ser visto como intrinsecamente errado é tratado como uma escolha natural a sua índole, uma escolha com consequências que não precisam resultar em tragédia – a história do urso gigante Mor’du, afinal, serve de comparação como um exemplo de um erro manuseado de forma nociva.
Valente faz jus a seu título ao contestar a existência de um Bem ou de um Mal absoluto, oferecendo um discurso que valoriza as escolhas individuais e a dedicação para compreender os outros. Por trás de sua aparência esquemática, esse “filme de princesa” possui uma disposição admirável para desconstruir arquétipos e imbui-los de humanidade.
Matéria de Pedro Costa De Biasi