Era inevitável, e Walt Disney logo percebeu. Um dia, alguém ganharia uns bons trocados às custas de sua história –que, nos anos 50, já incluía uma revolução nas animações, um gigantesco mercado de produtos associados a seu nome e a criação do parque Disneylândia.
Em 1956, então, ele aceitou dar uma série de entrevistas a um jornalista, com a condição de que sua primeira biografia autorizada, “The Story of Walt Disney”, saísse com a assinatura de Diane Disney Miller. Se era para alguém faturar em cima dele, que fosse a filha.
Depois dessa biografia, vieram outras dezenas, meticulosas, capengas, inócuas, sensacionalistas –incluindo uma sob o duvidoso título “O Príncipe Sombrio de Hollywood”.
A que chega amanhã às lojas do país, “Walt Disney: O Triunfo da Imaginação Americana” (Novo Século), do americano Neal Gabler, foi feita a partir de uma fonte, pode-se dizer, até mais confiável que as lembranças de Disney (1901-1966).
A origem de suas 944 páginas (incluindo mais de 200 só de referências) são milhares de desenhos, cartas e outros documentos reunidos ao longo da vida de Disney e que, arquivados nos estúdios em Burbank, Califórnia, até então só haviam sido parcialmente liberados.
Gabler, jornalista experiente, autor do best-seller “An Empire of Their Own: How the Jews Invented Hollywood” (um império só deles: como os judeus inventaram Hollywood; não lançado no Brasil), teve total acesso a esses registros e os pesquisou durante sete anos.
“Acontece que Walt amava fantasiar sua vida. Ele era, antes de tudo, um contador de histórias, e adorava alimentar sua própria mitologia”, diz Gabler, 59, à Folha, por telefone, de Nova York. “A um ponto em que eu não me sentia confortável em usar a versão de Walt se não pudesse checá-la.”
No livro, o autor coloca Disney, o contador de histórias, contra Disney, o jovem empreendedor que tropeça na própria ansiedade, que erra muito e que relata seus infortúnios em cartas para a mulher, o irmão (Roy, que comandou os estúdios com ele desde o começo) e mesmo desafetos.
“Em vez de apenas lembranças, tive em mãos documentos do momento, por exemplo, em que Disney, depois de concluir ‘Steamboat Willie’ [o primeiro desenho que sincronizava som e imagem], tentava vender Mickey para algum distribuidor em Nova York”, diz Gabler.
Treinador de camundongo
São com certeza versões menos românticas que aquela, do próprio Disney, segundo a qual ele criou Mickey após conseguir treinar camundongos.
“Nunca esquecerei o grito que uma garota deu quando entrou em meu escritório um dia e encontrou um rato sentado em minha mesa enquanto eu o desenhava”, ele relata, em uma entrevista citada na biografia.
Na verdade, segundo confirmou Gabler, Disney praticamente já não desenhava aos 23 anos, quando comandava seu pequeno estúdio, e quatro antes de Mickey ser criado.
Ele foi de fato um dos mentores intelectuais do personagem (e lhe deu voz até os anos 40, quando se cansou de arranhar a garganta com o falsete e passou a tarefa a um técnico de som), mas seu esboço de Mickey não ficou bom. “Era comprido e magro”, lembraria um colega.
Disney, diz Gabler, até sabia desenhar Mickey, “mas certamente não tão bem quanto Ub Iwerks”, o dono do traço de personagem nas primeiras animações. Iwerks pediu as contas menos de dois anos após a estreia do camundongo, sentindo-se lesado por Disney ficar com todos os louros. Ele acabaria voltando aos braços (ou melhor, aos estúdios) do colega anos depois, quando este já era internacionalmente famoso.
“Príncipe sombrio”
A fama de “príncipe sombrio” –que ganhou força com a questionável biografia de Marc Eliot, lançada em 1993– tem seu fundamento. “Walt Disney não era um homem fácil, e tento dar essa noção. Houve momentos, enquanto escrevia, em que me senti profundamente incomodado com suas atitudes, e um deles foi durante a greve nos estúdios”, diz Gabler.
Em princípio, Disney tentava lidar com os funcionários de igual para igual, mas os estúdios se tornaram tão grandes que, a certa altura, ele não tinha como saber o nome de todos os seus empregados. Foi então –quando havia até quem “desmaiasse de fome”, segundo o livro, sem tempo nem dinheiro para almoçar– que os funcionários decidiram paralisar.
“Walt Disney não agiu particularmente bem ali”, diz Gabler, “e uma das coisas que fez foi fugir. Ele deixou os estúdios e foi para a América Latina”.
A greve, em 1941, coincidiu com a ideia do governo de usar Walt Disney como uma espécie de embaixador dos EUA na América Latina –numa época em que os Aliados precisavam conquistar os países abaixo da linha do Equador para evitar a aproximação deles com o Eixo.
Enquanto exaltava o Brasil e seus vizinhos em “Alô, Amigos” (1943) e “Você Já Foi à Bahia?” (1944), com Zé Carioca, Walt Disney vivia também seus anos mais tristes, segundo Gabler –produzindo curtas por encomenda do governo norte-americano, como aqueles em que Pato Donald aprende a pagar seus impostos ou no qual, vestido de nazista, sofre nas mãos dos oficiais da SS.