Em seus últimos filmes, David Cronenberg tem se embrenhado em universos e conhecimentos fechados em si, seja o drama familiar em Marcas da Violência, o filme de gângster em Senhores do Crime ou a psicanálise em Um Método Perigoso. Sua mais recente empreitada, que estreia nesta sexta-feira, 7, sob o título Cosmópolis, não é diferente, embora a gama de áreas que o cineasta adentra nesse novo filme seja muito mais abrangente. Ele aborda sociologia, psicologia, política, economia, historiografia, estudos pós-modernos – em suma, muitos dos tecidos que formam o mundo contemporâneo.
O escritor Don DeLillo é a fonte primordial. Seu romance homônimo responsável por fornecer muitas das discussões apresentadas no roteiro, assim como a premissa básica: o bilionário Eric Michael Packer (Robert Pattinson) sai em sua limusine branca em busca de um corte de cabelo que o fará enfrentar um tráfego calamitoso em Nova York, experienciando no trajeto uma ameaça de morte, relações sexuais e protestos e encontrando com sua esposa Elise Shiffrin (Sarah Gadon), profissionais de seu trabalho e colegas. Enquanto isso, ele aposta suas ações na queda do yuan, em uma certeza cega que o fará perder sua fortuna.
Todos esses temas e personagens sequer são apresentados. São assuntos vomitados sem naturalidade seguindo encontros atropelados. Além da montagem brusca – que ocasionalmente até fratura o tempo e o espaço da mise-en-scène –, a conveniência, ou melhor, a comodidade suspeita desses encontros solapa qualquer credibilidade ou intenção de dramaturgia realista. A limusine recebe alguns dos elementos-chave do perfil pessoal e profissional de Packer, como seu médico, especialistas em economia, mulheres e, mais importante, sua chefe de teoria.
Este papel, vivido por Samantha Morton, tem uma presença relativamente longa em cena, e nas longas falas da personagem, ela apresenta uma série de teorias sobre noções tão diversas quanto a originalidade e a destruição criadora defendida pelo anarquismo. O mais importante, porém, é como ela volta a atenção para o que sempre está em pauta em Cosmópolis: as ideias. Elementos do filme como dramaturgia, atuação e montagem estão frigidamente subjugados às ideias, com cada ator representando uma ou mais competências de Packer.
Aos que conhecem a produção de Cronenberg desde início, essa atenção obsessiva a estudos não é tão estranha, embora a tangibilidade das discussões o seja. Um desdobramento radical da estética de Um Método Perigoso, Cosmópolis elege uma situação concreta e mundana para explorar ideias, e se livra até mesmo dos conflitos emocionais que varavam os psicanalistas Jung, Freud e Spielrein. As discussões soam menos como diálogos ou monólogos, e mais como as narrações científicas que interpretam a realidade física aparentemente sem sentido de Stereo e Crimes do Futuro – filmes que, no entanto, discutiam questões mais intangíveis.
Esta setorização dos personagens dentro dos conhecimentos de sua alçada é o tema central e climático do filme, que enquadra verbalmente todo tipo de incidente, desde uma revolta popular nas ruas e um homem ateando fogo a seu corpo até o casamento distante de Elise e Eric Packer, regido pela interpretação cínica e bem definida que os dois têm desse relacionamento (“Seja bondoso comigo”). Esse triunfo da teoria é uma tese em si, pois a bem metaforizada autoimplosão arquitetada por Packer representa uma tentativa de contrariar todas as regras do cabedal comportamental humano.
Outro tema do filme é a virtualidade dos relacionamentos e das experiências de hoje em dia, também como um fato dado e também como um recurso da encenação – afinal, a chegada sequencial de todas aquelas pessoas do círculo do protagonista é homóloga à praticidade de possuir todos os contatos salvos na agenda de um celular. Não é aí que reside a indiferença de Packer, pois sua profissão pressupõe a assimilação do – dinheiro, negócio, valor – virtual. Sua indiferença vai além: ele fere sua fortuna, sua segurança, sua conduta, sua credibilidade, sua estética e seu corpo de forma palpável, visando o mais absoluto desequilíbrio.
Uma das teses apresentadas pela personagem de Morton é a de que o presente se evanesceu, dando lugar aos processos constantes de destruir o passado e de prever, planejar e construir o futuro. O protagonista, então, se apodera dessa teoria para presentificar cada uma de suas ações, seja negando todo a riqueza que construiu no passado, seja destruindo seu futuro ao buscar a morte por duas vias distintas. Como exemplo: ao finalmente chegar no barbeiro que deseja, Packer começa a ouvir histórias do passado, e se recusa a permanecer no recinto.
A mise-en-scène também presentifica ao passar a impressão de virtualidade na sucessão irreal de encontros. No entanto, se esses personagens servem de porta-vozes de ideias, o que há de tão necessário na presença em cena de todos? No cinema de Cronenberg, o corpo nunca é secundário, e mesmo a supressão dos desejos carnais (vide Um Método Perigoso) ou a aparente superfluidade da presença física carregam significados profundos. E o corpo continua sendo a espinha dorsal da obra cronenbergiana.
Para além dos desejos carnais do protagonista, jogados de forma confusa em uma porção de cenas, o corpo é o centro da narrativa. A derrocada de Packer, mesmo que intencional, parte de uma impossibilidade de aceitar a assimetria que seu próprio corpo apresenta, e de forma parecida, ele se vê no homem que se autoimola, pensando na incomensurável dor física. Já o drama profissional de Benno (Paul Giamatti) parte não de um desvio comportamental, pois qualquer sociopatia ou psicopatia seria facilmente enquadrada no mundo contemporâneo, mas de seu mau cheiro.
A tensão fundamental de Cosmópolis está em apresentar um mundo setorizado e, por isso, funcional – a limusine high-tech de Packer é um microcosmos, pois “lá” ele pode silenciar o som externo, controlar a luminosidade e a vista, comer, beber e urinar –, e ao mesmo tempo centrar a história em um corpo que almeja a destruição. Afinal, a funcionalidade de um ser vivo parte do inevitável fim, seja nas pulsões reprodutivas do sexo, seja na constante ameaça da morte. O corpo é absoluto no cinema de Cronenberg. Até o momento em que ele morre. Por isso, a conclusão aberta da trama não serve apenas para tornar o ato de Benno um ato sem sentido, mas também para esticar o presente e negar o futuro.
Matéria de Pedro Costa De Biasi