De acordo com a assessoria de imprensa da ProCultura, o diretor Sérgio Machado guarda mais do que uma ligação espiritual com Jorge Amado. É ao escritor que ele atribui o início de sua carreira e a primeira grande parceria artística, com Walter Salles. Produzido por Walter, ele dirigiu em 2001 o documentário Onde a Terra Acaba, sobre o cineasta Mário Peixoto, diretor do clássico Limite (1931). O documentário conquistou prêmios nos festivais de Gramado, Rio, Recife, Havana e na Mostra de São Paulo. No ano seguinte, dirigiu para a TV Globo sua primeira adaptação de uma obra de Jorge Amado, o especial Pastores da Noite. Em 2005, Sérgio concluiu seu primeiro longa-metragem de ficção, Cidade Baixa, sobre um triângulo amoroso entre dois amigos e uma prostituta na zona portuária de Salvador, estrelado por Wagner Moura, Lázaro Ramos e Alice Braga. O filme foi selecionado para a mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, onde recebeu o Prêmio da Juventude e colecionou premiações em vários festivais no Brasil e no mundo. Com Karim Ainouz, seu parceiro artístico, dirigiu para a HBO, em 2007, a série Alice. O cineasta construiu também uma sólida carreira como roteirista dos seus próprios filmes e dos de seus parceiros, como Abril Despedaçado, de Salles, e Madame Satã, de Ainouz. Com Quincas Berro d’Água, Sérgio chega ao seu segundo longa de ficção adaptando uma das obras mais populares de Jorge Amado.
Como começou sua relação com Jorge Amado? Você chegou a encontrá-lo pessoalmente algumas vezes.
Posso dizer que devo ao Jorge o fato de fazer cinema hoje. Comecei a filmar em uma época péssima (o auge da era Collor) e não tinha amigos ou parentes na área. No final da faculdade de comunicação, fiz um curta, chamado Troca de Cabeças, que acabou virando cult porque só tinha atores negros, incluindo o Grande Othelo. Como acabou sendo o último filme do Othelo, que morreu logo depois, o Jorge Amado – compadre e muito amigo dele – se interessou em assistir e me convidou à sua casa. Ele me disse que acreditava que eu tinha talento e se ofereceu para me ajudar. Não nos falamos mais, mas depois de oito meses recebi um fax do Waltinho (Walter Salles) dizendo que queria me conhecer. Descobri que o Jorge havia enviado a fita com meu filme a ele. Walter me convidou para trabalhar em Central do Brasil (1997), no qual fiz assistência de direção, casting, locação, um pouco de tudo. Três anos depois, ele produziu meu primeiro documentário, Onde a Terra Acaba.
De todas as obras do Jorge Amado, por que filmar Quincas?
Em Cannes, me surpreendi com algumas críticas francesas falando que Cidade Baixa tinha uma forte relação com o universo do Jorge. Para dirigir essa minha primeira ficção, eu realmente havia (re)lido toda a obra do Jorge situada em Salvador. Ao reler esses livros, tive vontade de adaptar para o cinema Pastores da Noite (que acabei dirigindo para um especial da TV Globo) e A Morte e a Morte de Quincas Berro D’água. Mas considero o Quincas o melhor livro dele. Uma enquete realizada com críticos literários perguntava qual era o melhor livro de Jorge Amado, e foi uma barbada: quase 60% votaram em Quincas. É um livro do ápice da carreira do Jorge, em que ele tinha todo fôlego criativo, e já exibia uma grande maturidade.
Quais os temas presentes na história de Quincas que lhe atraíram a atenção – e que estão presentes no filme?
Quincas trata de temas que eu tangenciei nos filmes anteriores, mas que aqui são o cerne da questão. Tenho uma grande dificuldade de aceitar a ideia da morte, de que as pessoas que eu amo vão morrer. Fiz o Cidade Baixa para mostrar a vontade de viver daquelas pessoas marginalizadas, o quanto elas lutam contra um certo tipo de morte. Onde a Terra Acaba mostra um cineasta (Mário Peixoto) que de certa forma tentou parar no tempo, deixar de viver. Na série Alice, o suicídio do pai no primeiro episódio marca o início da trajetória da protagonista. Creio que meus trabalhos sempre dizem que a vida, por pior que seja, vale a pena. Em Quincas, é o assunto central. É um filme que não nega a morte, mas a contrapõe com a vida. Outro desejo constante em minha obra é mostrar o universo marginal, aproximar-se dessas pessoas e mostrar que elas são bacanas. Por último, tenho uma tendência natural à comédia e ao humor. Nos meus trabalhos anteriores, tive que botar o pé no freio na minha veia cômica, mas em geral as partes engraçadas são escritas por mim. Por isso, no Quincas, que na largada já era uma comédia, o roteiro saiu mais fácil.
Como foi trabalhar com Paulo José?
Foi o maior presente da minha carreira de diretor. Eu achava que não seria possível tê-lo no filme, ele teve um problema de saúde, e o filme exigia malabarismos físicos como ficar pendurado numa estátua e ser carregado pelas ruas enladeiradas de Salvador. Mas a Kika (Lopes, figurinista do filme e mulher do Paulo) me contou que ele estava muito bem, já havia feito uma cirurgia. Ele foi incrível, uma força aglutinadora no elenco. O elenco e a equipe do filme tinham alguma coisa em comum… todos era apaixonados pelo Paulo. A alegria dele, o prazer dele estar ali, contagiou todo mundo. O Paulo tem todas as características do Quincas – gaiato, moleque . Foi o personagem certo na hora certa. Fizemos dois bonecos do Quincas para usar nas filmagens, mas usamos bem menos do que eu imaginei. O Paulo conseguia entrar num estado Alfa, como ele chama, para se fazer de morto, para ficar um tempo sem respirar. Brincava e dormia no caixão, na maior descontração. Mesmo nos dias em que ele não estava previsto nas filmagens, aparecia no set para dar palpites e para ajudar os colegas a bater texto.
Como você chegou aos atores que interpretam os amigos do Quincas? E aos outros atores?
Já conhecia o Luis Miranda da série Alice e o Flávio Bauraqui desde a época do Madame Satã, do qual fui um dos roteiristas. Não conhecia o Irandhir Santos, mas a Fátima Toledo e outros colegas falavam tão bem dele que nem fiz teste. E o Frank Menezes eu já conhecia bem de Salvador. A Mariana Ximenes me ligou mostrando muito interesse em fazer o filme. Na época das filmagens, ela estava fazendo a novela (A Favorita), e eu logo disse que ela não teria como conciliar os dois meses de ensaio no Rio de Janeiro. Ela insistiu: “Mas vai que o filme atrasa um pouco…”. No fim, atrasou um mês e pouco, exatamente o tempo de que ela precisava para terminar a novela.
E de onde vem sua inspiração para trabalhar também com atores amadores?
No Central do Brasil, minha primeira função foi de produtor de casting. Desde aquele filme, chegamos à conclusão de que o melhor elenco é aquele que mistura atores consagrados com gente nova de teatro, que vem com vigor, e junta a eles ainda “gente de verdade”, em geral fazendo papel de si mesmos. O malandro Dois Mundos, por exemplo, é um personagem que aparece no Cidade Baixa e no Quincas.
Como foi rodar e finalizar a cena da tempestade em alto-mar, que envolve muitos efeitos especiais?
Estudei todos os filmes que pude com cenas de tempestade antes de preparar a do Quincas. Em termos de efeitos especiais, acho que talvez seja uma das mais complicadas já realizadas no cinema brasileiro. Porque o saveiro é um barco aberto; e por causa disso nós tivemos que não apenas construir o barco digitalmente, mas todos os personagens que estava dentro dele. Primeiro tivemos que pesquisar para saber se esse tipo de cena era viável de se fazer no Brasil. Montamos um saveiro em tamanho real dentro de um galpão e pintamos as paredes de verde, para usar o chroma-key. No galpão, construímos toda a estrutura para a chuva e os raios. Ao todo, foram quatro dias de filmagem no galpão. E fomos ao mar de verdade, filmar uma tempestade para inserir na imagem. Para os planos mais abertos um mar e um saveiro digitais foram construídos pelo pessoal da Tribbo. Foram vários meses de trabalho árduo.
Como foi a preparação de elenco com Fátima Toledo?
Ela chegou um pouco assustada porque nunca havia feito comédia, mas foi uma reinvenção pra ela. Ao contrário de Cidade Baixa, no qual só havia 3 atores para preparar, aqui havia muitos, de diferentes gerações e backgrounds. Me interessava que os atores não levassem em conta que estavam fazendo uma comédia. As situações que eles passam são ridículas e absurdas, mas eles viveram aquilo com verdade e de maneira intensa.